Data: 06/04/2020
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), o suprimento global de peixe deverá atingir 201 milhões de toneladas em 2030. A produção da aquicultura deve atingir 109 milhões de toneladas, representando um aumento de 36% em relação à produção de 80 milhões de toneladas de 2016.
A produção da aquicultura ainda depende fortemente de farinha de peixe e sua cadeia de suprimentos enfrenta muitos desafios. Primeiramente, sabemos que a demanda por farinha de peixe está crescendo mais rapidamente do que a oferta disponível, levando a aumento nos preços.
Em termos de custos, em 1983, o preço médio da farinha de peixe estava em torno de US$ 400/tonelada, mas nos últimos anos subiu para US$ 1.600/tonelada. Fazendo uma comparação, o preço do farelo de soja aumentou oito vezes menos no mesmo período.
Além do aumento de preços, há também o problema para adquirir farinha de peixe de alta qualidade, produzida com peixe inteiro e com menor teor de cinzas.
O suprimento dessa farinha de peixe (~ 68% de proteína bruta) está diminuindo. Isso ocorre devido às menores capturas de peixes utilizados para este fim, que por sua vez limitam o suprimento de farinha de peixe para a aquicultura. Além disso, o uso dessa matéria-prima é considerado insustentável a médio ou longo prazo.
À medida que nossa fonte de proteína de peixe evolui da pesca de captura para a aquicultura, isso também significa que precisamos fornecer aos peixes de criação todos os nutrientes necessários em uma alimentação completa e equilibrada.
Além disso, cada vez que avançamos para produções mais intensivas, há menos dependência da alimentação natural. A qualidade dos ingredientes utilizados nas formulações de ração e o tipo de processamento de ração utilizado têm um impacto direto na produtividade da aquicultura.
Diferentes processos de produção de ingredientes e suas características
Para entender essas diferenças, este artigo explicará os três tipos de processamento de ingredientes; o mais comum é processamento térmico ou cozimento. Ele acontece quando a matéria-prima é submetida a altas temperaturas em um digestor.
Esse processo tem o benefício de ser simples e barato, mas pode ser prejudicial às proteínas e afetar a digestibilidade e disponibilidade de aminoácidos. Para esse processo, estudos indicam que, quanto mais tempo a matéria-prima é exposta a altas temperaturas, menor a digestibilidade e o valor nutricional.
O segundo processo é a hidrólise química, que pode ser ácida ou alcalina. É quando a matéria-prima sofre alterações severas de pH. Esse tipo de hidrólise também é considerado um processo de baixo custo. A hidrólise ácida é frequentemente usada para melhorar o sabor, mas um ponto negativo é que, com esse processo, haverá uma destruição parcial de alguns aminoácidos, como o triptofano.
Figura 1. Esquema de hidrólise enzimática de enlace peptídico.
Quando tratamos de hidrólise alcalina, o impacto sobre os aminoácidos é ainda pior do que no tratamento com ácidos. Outra questão é que a hidrólise química aumentará o teor de cinzas no ingrediente, pois adicionará outros componentes durante o processo.
Por fim, temos a hidrólise enzimática, que geralmente ocorre em temperatura e pressão baixas e não resulta em perda de aminoácidos.
Além disso, melhora a digestibilidade das proteínas e a disponibilidade de aminoácidos para o animal. As enzimas também são mais precisas no controle do grau de hidrólise da ligação peptídica, possibilitando uma maior consistência do produto final. Outra vantagem é que, nesse processo, utilizamos menos energia e vapor em comparação com o processo de cozimento.
Hidrólise enzimática e peptídeos bioativos
Para entender mais sobre como a hidrólise enzimática gera ingredientes de alta qualidade e com benefícios funcionais, revisaremos alguns conceitos. Por definição, uma proteína é uma macromolécula que normalmente conta com 20 aminoácidos diferentes (AAs) que estão ligados por meio de ligações peptídicas. O aminoácido contém grupos amina e carboxila. A ligação peptídica é o elo entre o nitrogênio do grupo amina e o carbono do grupo ácido. A sequência de AA é o que define as diferentes proteínas e seu valor biológico.
Quando temos uma proteína com uma baixa massa molecular e um baixo número de aminoácidos, esta é chamada de peptídeo. Outro ponto importante é que os peptídeos podem ter diferentes atividades biológicas, como ter ação antimicrobiana, antioxidante, anti-hipertensiva e também imunomoduladora. Estes são chamados peptídeos bioativos e são definidos como sequências específicas de aminoácidos, com baixa massa molecular, e uma atividade biológica específica no organismo.
Uma maneira de produzir peptídeos bioativos é através da hidrólise enzimática da proteína inteira. A palavra “hidrólise” significa romper a água. A hidrólise enzimática é uma reação química acelerada por uma enzima que usa a água para quebrar uma molécula em duas outras moléculas. No caso das proteínas, a hidrólise forma cadeias menores de aminoácidos (peptídeos). Esses pequenos peptídeos são absorvidos com maior facilidade pelos órgãos do animal do que uma proteína inteira.
Além disso, o animal precisa de menos energia para absorvê-los. Essa energia extra pode ser usada para crescer, ganhar peso e enfrentar desafios.
A capacidade digestiva da proteína depende de vários fatores, entre os quais a idade do animal (isto é, estágio larval ou adulto) e a forma da proteína (se for um peptídeo pequeno, um aminoácido livre ou uma proteína intacta).
Geralmente, animais mais maduros absorvem os alimentos com mais eficiência do que os animais nos estágios iniciais; assim, as proteínas hidrolisadas serão absorvidas mais facilmente do que as proteínas intactas. Além do benefício da absorção in vivo de proteínas, a hidrólise enzimática também gera peptídeos bioativos.
Existem estudos experimentais abrangentes que envolvem conhecimentos de engenharia enzimática para determinar qual é a melhor enzima para diferentes matérias-primas, e quais condições de processamento são necessárias para atingir as bioatividades desejadas. Esta bioatividade pode variar dependendo do tipo de enzima utilizada, e cada enzima pode criar um peptídeo com uma sequência AA diferente.
Diferentes tipos de matérias-primas possuem diferentes peptídeos e bioatividades, como imunomoduladores e antimicrobianos. Os peptídeos bioativos identificados podem ser mais explorados no futuro para obter benefícios na nutrição animal, abrindo uma ampla variedade de aplicações para as proteínas hidrolisadas.
Proteínas hidrolisadas como ingredientes funcionais
Existe uma relação clara entre a maneira como os ingredientes são processados (e, portanto, seu valor nutricional) e o desempenho do animal. Com isso em mente, a BRF Ingredients projetou um novo método de processamento de ingredientes com base na hidrólise enzimática; esse processo gerou melhores resultados para o desempenho dos animais.
Figura 2. Distribuição de massa molecular do produto hidrolisado da BRFi.
Após a hidrólise enzimática da matéria-prima, quase todos os sólidos são removidos por filtração, diminuindo o teor final de cinzas para aproximadamente 4% e concentrando o teor de proteínas em mais de 75%, com uma digestibilidade superior a 90%. A estabilidade desses parâmetros é outra característica presente no processo.
Além disso, com a seleção de enzimas e graças às condições do processo, a maior parte do conteúdo de proteínas se encontra na forma de pequenos peptídeos com menos de 3000Da de massa molecular, que é considerada a banda com maior bioatividade.
Além das vantagens do próprio processo e das características dos ingredientes finais, a BRF, como empresa 100% integrada, pode facilmente garantir a rastreabilidade e o frescor da matéria-prima utilizada.
Impacto no desempenho animal
Em ensaios in vivo com tilápia, a digestibilidade da proteína foi de 93,61% e a inclusão de 2,5% de proteína hidrolisada de frango em formulações de tilápia nos estágios iniciais aumentou o peso final em 23% em comparação ao grupo controle com 10% de farinha de peixe.
Os experimentos também mostraram um efeito benéfico para a saúde intestinal com a inclusão de 3% de proteína hidrolisada, o que aumenta o número de vilosidades em 49% em comparação ao grupo controle de farinha de peixe.
Em tilápias adultas, a inclusão de 2,7% de hidrolisado proteico na ração aumentou o rendimento de filés em 6% em comparação ao grupo controle de farinha de peixe. Além disso, a análise do perfil lipídico plasmático da tilápia mostrou que, com a inclusão da proteína hidrolisada, os níveis de triglicerídeos e VLDL (lipoproteínas de baixa densidade) diminuíram, enquanto os níveis de HDL (lipoproteínas de alta densidade) aumentaram significativamente (Figura 3).
Figura 3. Perfil lipídico plasmático da tilápia alimentada com dietas contendo diferentes níveis de inclusão do Proteína hidrolisada de frango (experimento realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Brasil).
Esse resultado é uma indicação da presença de peptídeos bioativos anti adipogênicos, que melhoraram o metabolismo energético e promoveram uma utilização proporcional de nutrientes na degradação de proteínas.
Em um estudo desenvolvido no Vietnã, 2% de proteína hidrolisada de frango demonstrou ser capaz de substituir 5% da farinha de peixe e manteve o desempenho de crescimento da tilápia.
Nesse caso, além do benefício das funcionalidades bioativas, a mudança do farelo de peixe para o hidrolisado proteico apresenta como vantagens a possibilidade de restaurar ingredientes, estabilidade de preços e parâmetros de qualidade, sem efeito significativo no custo da formulação.
Com relação aos resultados da aplicação de proteínas hidrolisadas na alimentação de camarão, os ingredientes formados a partir de hidrólise enzimática produziram 94% do coeficiente de digestibilidade da proteína para esta espécie. Em experimentos de crescimento, a inclusão de 5% de proteínas hidrolisadas na formulação melhorou o peso final em 7% e a taxa de conversão alimentar em 14,3% em comparação ao grupo controle de farinha de salmão.
Figura 4. Mortalidade cumulativa de Litopenaeus vannamei alimentada com dietas contendo diferentes níveis de proteínas hidrolisadas em 48h de pós-infecção (hpi) com Vibrio parahaemolyticus na concentração de 9 x 107 UFC/mL (experimento realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (UFSC).
Em um teste de desafio para avaliar a resistência de camarão infectado intencionalmente com uma bactéria Vibrio, todos os tratamentos que incluíram ingredientes de proteína hidrolisada na formulação mostraram uma redução entre 20% e 50% na mortalidade cumulativa em comparação ao grupo controle que mantinha apenas farinha de peixe (Figura 4). Este é um forte indicador do efeito imunomodulador e/ou antimicrobiano de peptídeos bioativos.
Na aquicultura, a escassez de alguns ingredientes importantes pode atuar como um catalisador para o desenvolvimento de alternativas mais inteligentes, agregando melhor valor aos negócios. Ainda existem muitos mistérios quanto a proteínas hidrolisadas e peptídeos bioativos, mas já existem muitos estudos relatando benefícios em medicamentos, cosméticos, nutrição humana e também em nutrição animal.
Na nutrição animal, especificamente, os resultados da aplicação de produtos peptídicos e proteínas hidrolisadas em dietas de diferentes espécies demonstraram benefícios, incluindo melhoria da saúde intestinal, sistema imunológico, crescimento e desempenho da produção.
Em um mercado cada vez mais competitivo, essas vantagens não devem ser negligenciadas. O mundo inteiro está mudando e evoluindo rapidamente e na área de ingredientes para nutrição animal não é diferente. Novas tecnologias e processos mais inteligentes surgem o tempo todo e cabe a nós usufruir dos benefícios e contribuir para uma cadeia e negócios mais eficiente e produtiva.
Autores: Thaís Costa Andrade é especialista em P&D e Wilson Rogério Boscolo é consultor de P&D na BRF Ingredients.